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Terapia Familiar face aos desafios da sociedade: Uma conversa com Daniel Sampaio e Rui Godinho

27 de Junho, 2023

O encontro “Fora de Portas”, que juntou o Ispa, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar (SPTF) numa reflexão conjunta sobre a intervenção sistémica na comunidade da Terapia Familiar encerrou com uma conversa entre dois dos mais destacados especialistas da matéria, em Portugal: Daniel Sampaio e Rui Godinho.

Bruno Pimentel; Daniel Sampaio; Rui Godinho

Tanto o Psicólogo, Professor Catedrático jubilado e fundador da SPTF, quando o responsável pela Direção de Infância e Juventude da SCML defendem o olhar sistémico e as múltiplas dimensões de intervenção junto das famílias.

Rui Godinho começou por dizer que a intervenção terapêutica com famílias deve ser central no sistema de promoção e proteção e que esse tipo de intervenção é uma aposta clara da sua Direção, questionando a forma como a maioria dos processos estão a ser tratados em Portugal.

São residuais os processos de proteção em que há uma intervenção familiar e de terapia familiar, porque ainda está muito nos consultórios. Acho que não se resolvem problemas patológicos com soluções sociais, mas com respostas terapêuticas, ou, pelo menos, com intencionalidade terapêutica. O problema é que as respostas que nós temos são meramente de cariz social, ainda muito com resquícios de caridade ou de assistencialismo, mas isso não promove a mudança”, declara.

“Acho que não se resolvem problemas patológicos com soluções sociais, mas com respostas terapêuticas, ou, pelo menos, com intencionalidade terapêutica. O problema é que as respostas que nós temos são meramente de cariz social, ainda muito com resquícios de caridade ou de assistencialismo, mas isso não promove a mudança”.

Rui Godinho, SCML

“Não devemos apenas acrescentar, mas sim, transformar”, refere Rui Godinho, que defende que é fundamental uma sinalização precoce para evitar que muitas famílias cheguem ao sistema de apoio apenas “quando tudo já rebentou”.

Crítico da forma como o sistema está organizado, e daquilo a que chama a “incapacidade técnica e até emocional de muitos gestores de processo”, Godinho afirma: “É muito importante que, não só a terapia familiar, mas as diferentes formas de intervenção terapêutica estejam em articulação dentro do sistema comum de promoção e proteção, porque só pela transformação é que resolvemos o problema; de outra forma, estaremos apenas com paliativos e, muitas vezes, até temos um efeito contraproducente da intervenção, agravando o problema”.

Parentalidade: o grande desafio das famílias

Daniel Sampaio

Para Daniel Sampaio, a questão fundamental das famílias hoje é a parentalidade.O especialista afirmou: “A Terapia Familiar tem um papel importantíssimo no sentido de capacitar os pais a serem melhores pais. Para isso precisamos de estar atentos aos primeiros anos de vida das crianças que são os anos fundamentais e, fundamentalmente, precisamos de estar atentos aos pais e providenciar serviços que possam capacitar os pais para serem melhores pais. Eu não acredito em escolas de pais, mas acredito na possibilidade de pais que têm filhos na mesma faixa etária trocarem impressões uns com os outros e, a partir daí, poderem potenciar a sua capacidade de serem pais. Esta é uma área importantíssima para a Terapia Familiar”.

“Não acredito em escolas de pais, mas acredito na possibilidade de pais que têm filhos na mesma faixa etária trocarem impressões uns com os outros e, a partir daí, poderem potenciar a sua capacidade de serem pais. Esta é uma área importantíssima para a Terapia Familiar”.

Daniel Sampaio; Professor Catedrático jubilado, Psicólogo

A parentalidade e os desafios que a sociedade atual coloca aos pais é também para Rui Godinho um tema central quando se fala de intervenção sistémica em Terapia Familiar.

“Os pais, hoje, têm imensas dificuldades, sem suporte familiar. As pessoas levantam-se muito cedo, deixam as crianças na escola, vão buscá-las ao final do dia, – as crianças passam os dias fechados nas escolas – chegam a casa têm de ir a correr comprar comida para fazer o jantar, etc. É muito difícil criar momentos de qualidade nas dinâmicas que nós vivemos atualmente e isto cria problemas. Depois temos outra questão que é o divórcio. O divórcio é o novo normal e as famílias têm desafios enormes – duas casas, criar condições de vida, etc. Depois há as famílias que se juntam e juntam filhos dos dois parceiros e, por vezes, surge uma família numerosa de um dia para o outro. Acho que a realidade tem de ser acompanhada pelas mudanças. Por exemplo, um dos grandes fatores de conflito é a escola, quando os pais estão separados, com a questão de quem pode ser o encarregado de educação. Mudar a lei para que, em caso de residências alternadas, ambos os pais possam ser encarregados de educação seria uma coisa simples e lógica, mas não acontece, porque a realidade não acompanha as mudanças e este somatório de fatores cria um nível de entropia e um nível de pressão nas famílias que é absolutamente desestruturante”, disse.

“O professor Daniel Sampaio disse uma coisa que, para mim, é crítica: a intervenção não pode ser educar os pais ou capacitar os pais, porque os pais são incapazes e temos de os capacitar. Esta noção assimétrica não promove a mudança”. (…) “Quando nós queremos amestrar as famílias e ouvimos com paternalismo, não estamos a promover a mudança, estamos a confirmar que estas pessoas não conseguem ter direito de autonomia e reforçamos as dinâmicas de dependência”, concluiu.

Rui Godinho

Rui Godinho falou do novo projeto da SCML, denominado “Esfera”, que pretende criar recursos na área da Terapia Familiar e de intervenção terapêutica com as famílias, justificando: “As famílias hoje estão aflitas para cuidar dos filhos e não sabem. Não se trata apenas de pessoas com carências económicas, são todas as pessoas. Portanto, nós temos de ajudar a encontrar espaços em que as pessoas não se sintam ofendidas, espaços de crescimento em que possam pensar sobre as suas coisas, para pensarmos em conjunto e ajudarmos a resolver questões.”

Terapia familiar versus ortodoxia

Pegando nos desafios da parentalidade, Daniel Sampaio afirmou que para o êxito do trabalho de terapia familiar é importante os terapeutas não serem ortodoxos.

“Entre a família dos anos 60 do século passado e a família do século XXI (2023), houve uma extraordinária mudança. As famílias têm uma configuração completamente diferente. Por exemplo, nos anos 60 em Portugal havia 1% de divórcios; agora há 60%. Só isto, muda completamente o panorama. Para além disso, nós, terapeutas familiares, fomos formados do ponto de vista ortodoxo e aprendemos o ciclo vital da família que é o casal, que tem um filho, o filho vai para a escola, depois para a adolescência e depois sai de casa. Estas eram as fases do ciclo. Reparem o que é uma família atual, uma família reconstruída, por exemplo, que vai ter filhos em diversas etapas clássicas do ciclo da vida, o que coloca desafios muito importantes aos pais, como ter um filho na adolescência, outro filho bebé; ter um filho a sair de casa e um filho adolescente, etc. Portanto, o principal fator de formação de um terapeuta familiar é não ter ideias feitas do conceito familiar”.

O Professor alertou para os preconceitos dos terapeutas familiares sobre as famílias, como os preconceitos homofóbicos e transfóbicos; os preconceitos acerca das questões de género – do que é masculino e do que é feminino; os preconceitos sobre fidelidade e infidelidade e os preconceitos sobre a monogamia.

“Temos agora famílias na nossa sociedade que não são monogâmicas e temos alguns casais, não muitos, em que há poliamor.  5% dos americanos vivem em situações de poliamor, por exemplo. Tudo isso faz com que o nosso olhar sobre a família tenha de ser tudo menos ortodoxo. Por isso, a formação do terapeuta familiar tem de ser diferente da do primeiro curso de terapia familiar em Portugal, que foi em 1982”, disse.

O fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar frisou o papel importante da terapia familiar sistémica nas questões da violência doméstica, afirmando: “Posso ser acusado de machismo, mas quero chamar a atenção para que alguns aspetos da violência doméstica, são questões de violência do casal. É muito importante pensar nisso, porque aquilo que se ouve na televisão é que há um agressor e uma vítima. Sem negar importância a essa visão, digo que é preciso ir para além disso e verificar que há pessoas que não são violentas fora do contexto do seu casamento. Essa é uma área muito importante para trabalharmos na adolescência, através da educação sexual em meio escolar. Infelizmente está desvalorizada nas escolas. Há uma lei que tornou a educação sexual obrigatória em 2009, na sequência de um grupo de trabalho que eu coordenei, mas entre 2009 e 2023, aquilo a que se assiste é a um decréscimo da educação sexual nas escolas e a desvalorização da educação sexual na escola. Essa é uma área importantíssima para nós tratarmos da questão da violência no namoro, porque quem é violento no namoro, muito provavelmente será violento no casamento”.

Internet: Uma revolução na família e na Terapia Familiar

Referindo a internet como algo muito importante quando hoje pensamos na família, disse que a revolução das famílias assenta basicamente em duas coisas: a internet, nos anos 90, e agora, a migração e as culturas que os migrantes trouxeram às famílias.

“A terapia familiar do futuro tem de ter em conta esta revolução extraordinária que foi a internet. Já pensaram, por exemplo, na revolução que a internet determinou nos casais e na dinâmica dos casais e nas famílias com adolescentes? Na revolução que trouxe a internet nas relações entre pais e filhos?

Vejo o futuro da terapia familiar em duas dimensões: por um lado precisamos de potenciar o trabalho dos pais junto dos filhos, precisamos de trabalhar com casais, porque o elo conjugal atualmente é muito frágil. Temos 60% de divórcios, em Portugal por isso, a terapia de casal é uma área extremamente importante. A outra área tem a ver com a mudança do paradigma familiar de portas fechadas para a terapia familiar das portas abertas”, concluiu.

O passado, o presente e o futuro da Terapia Familiar

O fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, Daniel Sampaio, lembrou no encontro “Fora de Portas”, que a SPTF faz 45 anos em 2024, tendo considerado a sua criação como um marco histórico.
Em jeito de aula, o Professor falou da evolução da Terapia Familiar desde os anos 60 até aos nossos dias.
“A terapia familiar surgiu nos anos 60 nos Estados Unidos e, mais tarde, na Europa, como reação à visão intrapsíquica dos problemas de saúde mental. Nunca podemos esquecer isto, ou seja, nos anos 50 e 60 o discurso científico privilegiava o intrapsíquico: a infância e a causalidade da infância nas perturbações mentais. Portanto, quando surgiu a terapia familiar sistémica e a teoria dos sistemas nos anos sessenta foi uma relativa revolução, porque, pela primeira vez, se chamou a atenção para a interação.
A primeira sessão de terapia familiar foi feita por uma assistente social – Mary Richmond – que pensou que, em vez de recolher informação das crianças, dos jovens, dos seus pais ou professores, era importante reunir a família e ouvir todos ao mesmo tempo. Hoje parece uma banalidade, mas foi de uma enorme importância. 
Os primeiros autores da Terapia Familiar tinham uma lógica muito interessante que era ter uma ideia do que era a família saudável. A primeira fase da terapia familiar era o confronto entre o terapeuta – dotado do poder do conhecimento da família saudável – e a família, em que a intervenção se baseava na alteração que o terapeuta ia produzir na família, no sentido de mudar a família para a aproximar do seu paradigma de família saudável. Isto era como se a família fosse uma unidade, em que o terapeuta introduzia qualquer coisa no sistema familiar e, a partir dessa intervenção a família modificava-se.
A segunda fase da terapia familiar foi quando se percebeu que este terapeuta neutro, dotado deste poder, era, ele próprio, um participante e foi aí que passamos para a segunda fase, que era a co-construção, em que há no sistema um, dito, observador e um, dito, observado e há uma dialética e uma interação entre o terapeuta e a família.
Finalmente, a terceira fase é aquela em que estamos agora, aquela a que aqui chamaram “Fora de Portas”, porque, de facto, a terapia familiar tem de sair da sua bolha do consultório, do hospital e do centro de saúde e tem de ir até à comunidade”.
 

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