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“Aquele já não é o meu país” – Lisa Matos

30 de Julho, 2021

A experiência de refúgio engloba a exposição a acontecimentos potencialmente traumáticos no país de origem. Estes incluem, entre outros, guerra, tortura, perseguição por motivos religiosos, de raça, nacionalidade, opinião política e pertença a determinado grupo social durante o período migratório e já no país de acolhimento. A exposição a estes acontecimentos e stressores tem impactos negativos na saúde mental – stress pós-traumático, depressão, ansiedade – que dificultam o processo de integração nas sociedades de acolhimento.

O projeto “Journeys in Meaning”, da investigadora do Ispa Lisa Matos, procura, assim, perceber de que forma as populações refugiadas conseguem atribuir sentido aos seus traumas e recuperar a ponto de perceberem benefícios das experiências traumáticas passadas. Para o primeiro estudo deste projeto foi importante definir bem a população-alvo: “pessoas com experiência de refúgio, ou seja, com experiência de migração forçada e exposição a traumas severos e extremos, não chegam necessariamente aos países de acolhimento com estatuto de refugiado ou outros estatutos legais derivados. Como tal, decidimos eliminar o estatuto legal como critério de inclusão no estudo, para assim capturar uma maior diversidade de experiências de refúgio”.

Acrescenta que, nesta primeira fase do projeto, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, “precisávamos de perceber quais são os stressores, os acontecimentos, que a população síria em Portugal enfrentou e enfrenta. Ao percebermos quais são estes focos de disrupção e sofrimento, podemos depois tentar trabalhá-los em contexto clínico, quando apropriado, e adaptar as estratégias de intervenção no terreno, informadas pela evidência científica, para promovermos a sua integração a longo prazo”.

Usaram uma metodologia mista, tanto quantitativa como qualitativa. “Entre outubro de 2018 e maio de 2019, realizámos grupos focais numa primeira fase e entrevistas individuais numa segunda, com 44 pessoas de nacionalidade síria a residir em vários distritos, de Braga a Évora. A nossa amostra acabou por ser composta maioritariamente por estudantes sírios (70%), a maioria em Portugal ao abrigo da Plataforma Global de Estudantes Sírios e que, como tal, foram trazidos pelo governo português, tendo assim evitado processos migratórios perigosos como a travessia do Mediterrâneo. O resto da amostra incluiu refugiados reinstalados a partir do Egito, requerentes de asilo ao abrigo do programa de recolocação da Comissão Europeia a partir da Grécia, e por requerentes de asilo espontâneos”.

Lisa Matos descreve o que encontraram em termos de exposição a acontecimentos traumáticos na Síria como “avassalador, especialmente tendo em conta que a maioria dos participantes do estudo eram estudantes internacionais e não refugiados ditos ‘tradicionais’”. Os 21 homens e 23 mulheres que integraram este estudo tinham sido expostos a um total de 642 traumas extremos, incluindo bombardeamentos, confinamento forçado, desaparecimentos de familiares e amigos e, nalguns casos, tortura física e psicológica. Aliados a estes, “os stressores e dificuldades diárias associados à vivência em contexto de guerra contribuíram também para questionar crenças e visões do mundo relativas a segurança, justiça, benevolência e previsibilidade das suas próprias vidas. Quando há perceção de discrepâncias entre as experiências vividas e aquelas que eram as suas visões do mundo antes da guerra, gera-se sofrimento psicológico que precisa de ser resolvido através de processos cognitivos de atribuição de sentido, de forma a restabelecer ou exceder o nível de funcionamento psicológico pré-trauma”.

Neste primeiro artigo, publicado na revista Psychological Trauma: Theory, Research, Practice, and Policy da American Psychological Association, o título “That is Not My Country Anymore” é apto. Lisa Matos explica que “aquilo que percebemos é que as crenças e os objetivos de vida da população em situação de refúgio vão-se alterando conforme as suas experiências, tanto no processo de fuga como no de acolhimento. Muitos participantes partilharam o facto de terem saído da Síria com o objetivo inicial de voltar para lá viver; no entanto, e apesar de enfrentarem múltiplas dificuldades e desafios no nosso país, essa meta vai sofrendo alterações à medida que os refugiados se adaptam à vida em Portugal. No caso de alguns estudantes que partilharam relatos de visitas curtas à Síria para visitar a família, depois de verem o que Portugal oferece em termos de liberdade, segurança e oportunidades de realização, quando confrontados com a destruição do seu país, sofrem uma nova perda – este, enquanto destino, acaba por se desmoronar”.

Podem consultar o artigo em https://doi.org/10.1037/tra0001031

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